quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O transporte ferroviário de mercadorias, as bitolas, e as novas linhas de AV

Muito se tem falado nos últimos tempos sobre as novas linhas de alta velocidade que serão feitas em Portugal, havendo muitas vozes que no meio de toda a discussão e alarido mediático chamam a atenção para o facto de que o transporte de mercadorias é tão ou mais importante para a economia do que o transporte de passageiros, pelo que mais do que criar novas linhas para passageiros, importa criar condições para que o transporte ferroviário de mercadorias possa singrar.
Esta é sem dúvida uma verdade, não sendo ainda assim as duas prioridades (novas linhas de alta velocidade (AV) para passageiros e melhoria do transporte ferroviário de mercadorias) exclusivas. De facto, a construção destas novas linhas de AV terá um impacto positivo no transporte de mercadorias na rede ferroviária convencional, visto esta ir ficar menos congestionada, devido à construção de linhas de AV paralelas (nomeadamente no eixo Porto-Lisboa).
Ainda assim, a razão pela qual escrevo este post não é para falar do impacto das novas linhas de AV, mas sim de algumas aspectos relativos ao transporte ferroviário de mercadorias.

Há muitos defensores da tese de que as linhas de AV deveriam ser também utilizadas para transporte de mercadorias, nomeadamente a linha Lisboa-Madrid, que será, com efeito, projectada tanto para comboios de passageiros como para de comboios de mercadorias. A questão é que a principal razão pelo que isto acontece é o facto de o terreno entre Lisboa e Madrid ser bastante suave, permitindo, sem grandes dificuldades, projectar uma linha de AV com rampas máximas aceitáveis para a circulação de mercadorias, sendo que os moldes em que a linha será usada por comboios de mercadorias estão ainda bastante mal definidos, estando longe de ser certo que a linha venha algum dia a ser usada por comboios de mercadorias.
A razão pela qual uma linha desta natureza é pouco atractiva para comboios de mercadorias é o facto de o custo pelo seu uso ser muito elevado, da compatibilização entre comboios de passageiros a circular a 300/350km/h e comboios de mercadorias a 120/140km/h ser difícil, e da manutenção das condições necessárias à circulação de comboios de AV a 300/350km/h ser difícil de assegurar com a linha a ser usada também por comboios de mercadorias (que desgastam muito a linha). Mais do que chegar rápido, à maior parte das mercadorias interessa chegar a horas (independentemente do tempo de percurso) e minimizar os custos (usando por isso as linhas mais baratas), sendo que a esmagadora maioria dos comboios de mercadorias que fizerem o itinerário Lisboa-Madrid no futuro optarão pela linha convencional ao invés da linha de AV. É aliás exactamente por isso que será construída uma via em bitola ibérica paralela à linha de AV entre Évora e Badajoz, para permitir que os comboios de mercadorias Lisboa/Sines-Madrid possam seguir pelo Poceirão e depois por Évora-Badajoz-Puertollano-Alcazar, até Madrid (ou outros pontos em Espanha ou na Europa).

Existe também a questão da bitola (distância entre carris) ibérica que, como é sabido, é diferente da bitola europeia (usada no resto da Europa e nas linhas de AV espanholas) (Bitola Ibérica = 1668mm; Bitola Europeia = 1435mm), o que representa um entrave para os comboios de mercadorias que queiram circular entre a península e o resto da Europa, tendo que trocar de locomotivas e de eixos ou fazer a transferência da carga para outro comboio na fronteira.
Este é com efeito um grande problema que, embora tenha uma solução (fazer a migração da rede ibérica para bitola europeia) esta é altamente complexa e cara, sendo que por agora não passa de uma ideia, que será eventualmente concretizada a longo prazo. Ainda assim, já se pensa nisso tanto em Portugal como em Espanha, usando-se agora nas renovações da rede ibérica travessas bi-bitola (com fixações preparadas tanto para bitola ibérica como para bitola europeia) que facilitarão os trabalhos numa eventual mudança de bitola (não existindo ainda assim soluções bi-bitola para os aparelhos de mudança de via). Um dos grandes problemas que uma eventual migração enfrenta é a dificuldade de o processo se realizar de forma gradual, visto isso implicar incompatibilidades entre as diferentes partes da rede (imagine-se o que seria passar apenas a linha do norte para bitola europeia - a linha ficaria isolada do resto da rede, e as restantes linhas ficariam desligadas umas das outras). É este problema de incompatibilidades que faz com que por agora não adiante construir novas linhas em bitola europeia para mercadorias, sendo que isso só teria interesse se houvesse alguma linha planeada em bitola europeia apta para mercadorias que tivesse continuidade até França.

Assim sendo, o “Eldorado” da bitola europeia para o transporte de mercadorias, como é muitas vezes defendido por alguns comentadores, não passa de algo fantasioso, sendo que só adiantará haver linhas nesta bitola para transporte de mercadorias quando toda a rede ibérica for de bitola europeia ou se houvesse uma linha contínua nesta bitola até à fronteira francesa (algo que não está previsto acontecer).

Com o que expus atrás procurei explicar porque é que o transporte de mercadorias por linhas de bitola europeia só fará sentido quando se der a migração da rede ibérica para bitola europeia, algo que provavelmente só acontecerá daqui a longos anos. Por agora importa potenciar a actual rede ibérica para o transporte de mercadorias, não através da construção de novas e espectaculares linhas, mas sim adequando as actuais para melhor servirem este propósito (nomeadamente através do aumento do comprimento máximo permitido para 750 m ou mais, nas principais linhas) e indo preparando a rede para a eventual migração para bitola europeia.